Transcorreu em silêncio o centenário de publicação da Carta Pastoral de Dom Sebastião Leme

Postado em 29-12-2016

Transcorreu em silêncio o centenário de publicação da Carta Pastoral de Dom Sebastião Leme da Silveira Cintra (1882-1942), bispo de Olinda em 1916. O futuro Cardeal do Rio de Janeiro convocou, nesse documento notável, o laicato católico à militância  política e cultural, arena então dominada por positivistas e liberais. O texto declara ser um escândalo que um país de maioria católica não tivesse nos quadros dirigentes e nos atores culturais elementos capazes de impregnar as leis e os costumes com a moral cristã.

Com a proclamação da República, a perspectiva  de um caminho livre do Padroado estatal, que tutelava a Igreja há séculos, não obstante os desafios de reorganizar a instituição eclesiástica econômica e juridicamente,  trouxe importantes personagens da intelectualidade ao grêmio católico.Uma linhagem de pensadores que ficou célebre foi a que nasceu do espiritualismo brasileiro (Gonçalves de Magalhães) e determinou a obra de Farias Brito, que influenciou a conversão de Jackson de Figueiredo. Este fundou a revista A Ordem (1921) e o Centro Dom Vital (1922) no Rio de Janeiro, e foi decisivo para a conversão e engajamento de Alceu Amoroso Lima, junto ao Pe. Leonel Franca, fundador da PUC-RJ. Ao grupo se juntariam Gustavo Corção, Gladstone Chaves de Melo, Afonso Arinos, Tasso da Silveira, Sobral Pinto… e tantos que fizeram a história do século XX ser mais humana  e esperançosa no Brasil.

Hoje, como à época, presenciamos um novo capítulo da queda de braço entre Direito Natural e Direitos Civis, artificialmente armada pelas hostes liberais desde as revoluções modernas. Somos obrigados a ver em Trump e Crivella os defensores da lei natural, depois que os sucessores de Dom Leme tomaram atalhos esquerdizantes nos anos 1960/70. Poucos viram este desvio sob a ótica daquele falso dilema. Um deles foi Gustavo Corção, que em 17 de dezembro faria 120 anos.

Em Patriotismo e Nacionalismo (1960), Corção mostra quão rasa e inútil é a luta pelos direitos humanos se apenas baseada no ordenamento jurídico positivo, desamparado da antropologia cuja base metafísica abra-se à revelação. O patriotismo será uma componente do bem comum, exigida pela justiça iluminada pelo quarto mandamento: honrar pai e mãe. Em Dois amores, duas cidades (1967), desmonta o dilema esquerda/direita, que dá vida e voz à falsa oposição entre Direitos civis e Direito natural, e aponta o liberalismo como a matriz ideológica dessa ética mundana e perniciosa. Atualíssimo, Corção precisa voltar a ser lido.

Cem anos depois da Carta de Dom Leme,  lideranças católicas querem apagar fogueiras com gasolina; querem defender a vida contra o aborto, defender a família e a sociedade usando as mesmas abstrações jurídicas que promovem a cultura da morte. Partem das mesmas premissas liberais julgando poder atingir fins distintos daqueles que se cevam no ateísmo prático e no agnosticismo cínico. Não podemos deixar de notar a coincidência das efemérides de Dom Leme e Corção em face do desaparecimento de Dom Paulo Evaristo Arns. Como também a estranha louvaminha da imprensa liberal (de direita?) aos feitos deste prelado.

Marcos Cotrim de Barcellos