A filosofia aristotélica e a política brasileira
25/01/2016
FILOSOFIA ARISTOTÉLICA E POLÍTICA BRASILEIRA:
Breves considerações sobre a nossa realidade
Wallece José S. Lima
‘’As idéias precedem os canhões’’
Padre Leonel Franca
INTRODUÇÃO E JUSTIFICATIVA
Hoje, falaremos um pouco sobre a filosofia aristotélica e como ela pode nos auxiliar em nossa realidade política brasileira. Aristóteles é, por direito, o fundador do modelo ocidental de racionalidade, junto a Sócrates e Platão, caracterizado pela busca metafísica do ser. O filósofo de Estagira, além de inaugurar várias ciências clássicas, ter criado a primeira classificação das ciências e da poética e, de certo modo, a própria metafísica do ser e do ente, deixou-nos outro legado inestimável: o seu método científico e filosófico composto pelo silogismo, a dialética e pelo método indutivo-dedutivo, ferramentas insubstituíveis e elementares a qualquer atividade científica. Assim, o modelo de racionalidade ocidental é aristotélico à medida que o ocidente é devedor não só do sistema orgânico do Filósofo, mas principalmente de seu método; não há nenhum método científico, político ou metafísico criado depois de Aristóteles que não tenha influência direta do estagirita. Mesmo a tentativa de certos filósofos modernos de negar todo o edifício teórico construído por Aristóteles, ignorando a existência da metafísica, a validade da lógica, dos limites da ciência definidos pelo filósofo e negando a própria natureza da moralidade, nenhum filósofo moderno ou contemporâneo jamais conseguiu fazer filosofia lançando mão do método aristotélico.
Nossa exposição não será ortodoxa e, portanto, não se pautará em nenhum manual de filosofia aristotélica em específico. Também não trataremos especificamente da filosofia política de Aristóteles. Nossa intenção é somente fornecer uma visão geral dos princípios aristotélicos e demonstrar como eles podem nos ajudar com os problemas políticos cotidianos que enfrentamos no Brasil. Como de costume, não deixarei de fornecer algumas referências bibliográficas que nortearam este estudo sobre o tema proposto: Progresso e Religião, de Christopher Dawson, A crise do mundo moderno, de Padre Leonel Franca; A barbárie, de Michel Henry; O século do nada, de Gustavo Corção; O Comunismo no Brasil de Ferdinando de Carvalho; A nova ciência da política, de Eric Voegelin; Filosofia da Crise, de Mário Ferreira dos Santos, História do liberalismo brasileiro e O socialismo brasileiro, de Antônio Paim; além dos Comentários à metafísica e à política de Aristóteles de Santo Tomás de Aquino, Aristóteles em Nova Perspectiva, os manuais clássicos de filosofia: Tratado de Filosofia: Metafísica do Régis Jolivet, Introdução à filosofia, de Maritain, História da Filosofia de Giovanni Reale e Dario Antiseri e Noções de História da Filosofia, de Leonel Franca e os próprios livros de Aristóteles: Metafísica, Ética a Nicômaco e Política.
PARA UMA ‘’CONSCIÊNCIA DA CRISE’’
Antes de falarmos sobre Aristóteles, é obviamente necessário contextualizarmos o problema proposto, esboçando o quadro geral da política brasileira e ocidental. O mundo ocidental, de modo geral, vive ainda sob os ditames da mentalidade moderna, quer dizer, todo o senso de orientação que a sociedade contemporânea possui, seja na política, na filosofia ou na moral, foi dado pela modernidade e dela ainda não nos desvencilhamos – salvo as preciosas e raras exceções, claro. Vivemos de acordo com a regra moderna, eis o dado elementar. Há, é verdade, uma corrente filosófica que hoje ostenta a condição de ter transgredido a modernidade e passado à condição de pós-modernidade. Não cabe aqui aprofundar-nos no mérito da questão, mas a idéia mesma de uma pós-modernidade, se é que ela existe, é ainda mentalidade moderna. Os vários autores ditos pós-modernos convergem quanto às principais características da pós-modernidade: a) a recusa em conceituar ou definir o que quer que seja em nome de exacerbado e deturpado ideal de ‘’mundo aberto’’ e b) dar à subjetividade o único critério de certeza da realidade. Óbvio que não é preciso dizer que a ‘’condição pós-moderna’’ é, no mínimo, esquizofrênica, pois ao mesmo tempo em que negam a validade de qualquer conceituação, tomam como ponto de partida, a definição ‘’clara e distinta’’ de um tempo histórico como norma de conduta e senso de orientação da própria existência. Além do mais, a subjetividade pós-moderna já era um ponto de partida da própria filosofia moderna, de Descartes a Hegel. Assim, mesmo que haja uma pós-modernidade, seus pressupostos ainda são modernos.
Mas o que queremos dizer exatamente quando falamos em mentalidade moderna? Das várias características da modernidade que hoje influenciam nossa vida, as principais são, em primeiro lugar, a visão imanentista e revolucionária da teleologia humana, que já falamos em outra ocasião, o antropocentrismo oriundo da dúvida universal e, principalmente, o rompimento com a tradição cultural e espiritual do período medieval. As investigações filosóficas e propostas políticas realizadas pelos ‘’iluministas’’ partiram do assustador e enigmático pressuposto que não houve nada de significante antes na história; ignoraram os avanços políticos da idade média, erigiram sistemas filosóficos sem sequer mencionar os avanços escolásticos e pretenderam criar edifícios teóricos como se o Século das Luzes fosse o verdadeiro início da cultura humana.
Do antropocentrismo moderno e da imanentização gnóstica das obras (para usarmos a linguagem voegeliana), que vimos em outra oportunidade, surgiram teorias éticas que tomam o homem como mera relação com as realidades materiais. O dogma da liberdade como finalidade em si mesma, decretado pela Revolução Francesa, somado com a exaltação do indivíduo pela propaganda contratualista (que criou esta noção de indivíduo substituindo a concepção cristã de pessoa), deu início ao liberalismo moral e econômico, criando uma ruptura entre a nascente elite burguesa iluminista e a classe servidora - ruptura esta que chegara às raias do total afastamento entre ambas as classes, rompendo de vez com o sistema social católico que assegurava relativa proteção (mais eficaz que o modelo moderno, ao menos) aos membros das classes inferiores da pirâmide social.
Por outro lado, a idéia contratualista não lançou as bases somente do liberalismo de Adam Smith, Mill, Malthus e David Ricardo. A ruptura criada por Locke, Hobbes e Rousseau, entre o indivíduo tomado ‘’individualmente’’ e do indivíduo inserido no meio social, deu margens também ao levante do social contra o indivíduo, início das teorias socialistas. A distinção entre indivíduo e sociedade tem também outra raiz, que é a separação maquiavélica (em todos os sentidos) entre ética e moral, paradigma (para usar uma linguagem contemporânea) da ação política contemporânea. A separação entre ética e moral é símbolo da distinção entre aquilo que se faz particularmente e aquilo que se faz publicamente, a ruptura entre este ‘’eu individual’’ e o ‘’eu social’’; o homem moderno não vê nenhuma contradição e assumir publicamente ações ou discursos diferentes de seu credo pessoal ou familiar. A ruptura aberta entre as ações particulares e as decisões políticas contribuiu para o surgimento do relativismo moral. Mas não apenas o liberalismo e o socialismo são os filhos da modernidade. Por intermédio da distinção entre natureza e cultura operada por David Hume ao negar o valor cognoscível da metafísica e potencializada por Kant e Hegel, surge também a falsa concepção moderna de conservadorismo, que toma a posição conservadora não como práxis, relação do sujeito com a cosmovisão, mas como teoria, sistema político dotado de princípios, tornando-o, paradoxalmente, objeto de ação política. Assim, temos a visão geral da política moderna e como ela ainda dita os rumos da discussão ideológica no ocidente.
Contudo, ao estabelecermos uma relação deste quadro geral que acabamos de apresentar com a realidade brasileira, não podemos nos furtar de levar em conta um dado importante: na França, Itália, Inglaterra e Alemanha, o advento da modernidade foi, digamos, amortecido pelo período de transição comumente chamado Renascimento. O período renascentista abriu a passagem para a modernidade não apenas culturalmente, mas espiritualmente, com o progressivo afastamento das relações materiais com o Sagrado, reservando somente à fé a relação com o sacro, o que culminou no surgimento do protestantismo. Porém, à medida que os países citados desvencilhavam-se da Idade Média, a União Ibérica (centro econômico europeu da época) dava ao mundo os seus maiores frutos na filosofia escolástica e na arte barroca; Portugal, Espanha e, conseqüentemente, os países colonizados por ambos, incluindo o Brasil, não viveram o Renascimento com a mesma força que a Itália, França e Alemanha, por exemplo. Assim, quando o Brasil recebeu a notícia da Revolução Francesa, ponta-pé da modernidade, nosso país ainda era espiritualmente barroco.
O dogmático lema libertè, Égalitè e fraternitè, tal como na França, encantou somente a oligarquia agrária brasileira e os universitários idealistas, que vislumbraram na ação revolucionária da insurgente burguesia francesa (também tirana e oligárquica), um modelo de tomada do poder político em nosso país. Não é preciso dizer o quão grande foi o choque cultural que sofremos no Brasil. Do dia para noite, a Terra de Santa Cruz foi arremessada no olho do furacão da modernidade: importamos, pelas mãos de uma elite econômica sedenta de poder, os ‘’avanços’’ do Século das Luzes: a revolta contra a Coroa trazia consigo o peso simbólico da luta do burguês contra o rei, do positivismo contra o barroco, da ditadura contra a autoridade, da revolução contra a ordem natural e da ciência gnóstica contra o Sagrado. Toda a revolta iluminista, no Brasil, passou ao largo do conhecimento e da vontade popular (que soube post factum da novidade da República), agravando o afastamento da participação popular nas decisões políticas. O choque do iluminismo no Brasil foi tão violento, espiritualmente falando, quanto nos países europeus pois aqui não tivemos o renascimento, que deu ao surgimento da modernidade a falsa sensação de um fluxo natural e harmonioso da história.
Claro que uma mudança tão abrupta em uma cultura não é assimilada facilmente pela população interiorana. Até mesmo intelectuais comunistas, como Labriola e Gramsci, perceberam que o processo de mudança da mentalidade de uma cultura leva tempo, e no Brasil não foi diferente. Podemos dizer que culturalmente, os brasileiros começaram a assimilar a mentalidade moderna somente no século XX, com a novidade do positivismo– novidade aqui, pois já era velho conhecido na Europa e cujos frutos amargos já floresciam por lá. Assim, somente no início do século XX, como nos diz Evaristo de Moraes Filho, que os movimentos comunistas brasileiros começaram a se articular. Apenas no século XX surgiram os grandes intelectuais de esquerda no Brasil como Ruy Mauro Marini, Theotonio dos Santos, Leandro Konder e Caio Prado Júnior. Embora a revolução republicana no Brasil tenha sido embalada pelos ideais liberais e tenha conhecido no século XIX intelectuais liberais como Hipólito da Costa e Silvestre Pinheiro Ferreira, foi também no século XX que despontaram os primeiros grandes nomes do liberalismo que pretendiam colocar o Brasil em diálogo com as correntes liberais européias de até então, como Gilberto de Mello Kujawski, Antônio Paim e, sobretudo, José Guilherme Merquior. O mesmo com o conservadorismo brasileiro: mesmo nosso país tendo, no final do século XIX, os grandes Eduardo Prado e Joaquim Nabuco, é também no século XX surgiram os grandes nomes do conservadorismo brasileiro, como Oliveira Viana, João Camilo de Oliveira Torres e o esquecido Carlos Lacerda. Em suma, se por um lado, o processo de abandono do Brasil barroco por parte da elite burguesa pragmática e revolucionária foi assustadoramente rápido, o processo da formação intelectual capaz de dialogar com esse novo momento do Brasil e do mundo, foi extremamente tardio.
A tudo que foi dito acima, soma-se ainda o fato da complexa trama que foi a articulação comunista no Brasil em prol da tomada do poder, que contou com a influência da própria URSS, e cuja força obrigou o povo brasileiro amargar a terceira ditadura (segunda militar) em sua curta e amarga vida republicana. O regime militar, como sabemos, desarticulou a direita ainda em formação, censurando conservadores e liberais, contudo, foi incapaz de impedir o crescimento do comunismo no plano cultural e burocrático, que apoderou-se não só dos cargos de liderança das instituições estatais, mas tornou hegemônica, ao modo gramscista, a cosmovisão comunista em diversas áreas da sociedade. Com o desastroso processo de redemocratização, os comunistas assumiram (sem nenhuma resistência por parte dos conservadores e liberais, desarticulados por forças externas e internas) formalmente todo o establishment que já detinham ‘’clandestinamente’’ desde 1964, desequilibrando ainda mais o ‘’jogo esquerda-e-direita’’, que já nascera vicioso.
Assim, com o lado direito da política moderna fora de campo, a ala esquerda assumiu o poder sem maiores contratempos. Mas como é nos tempos críticos que surgem os grandes sábios, recentemente, com o agravamento da crise, surgiram jornalistas liberais e conservadores, ensaístas e filósofos, que despertaram a consciência dos brasileiros para os desmandos do comunismo, resgatando a consciência de uma direita, perdida nos ‘’porões’’ da história brasileira. No que tange à formação espiritual e intelectual de nossa nação, muita coisa se perdeu ou foi deturpada nestes tempos de hegemonia socialista e, assim, a tomada de consciência da (limitada) função histórica da direita em nosso país ainda está em processo de formação. Hoje, embora haja uma guinada à direita, como dissemos em outras oportunidades, sua formação é ainda defasada, pois seus adeptos tomam-na como representante de uma tradição espiritual e intelectual que, como acabamos de ver, não é real. Direita (seja liberal ou conservadora) é uma idéia tão moderna quanto a noção de esquerda. É este, de modo bastante resumido, o quadro geral da situação política em nosso país: uma esquerda estabilizada e detentora da hegemonia (ao menos legal) das instituições brasileiras e uma direita galgando seus primeiros passos, ambas, peças de um mesmo jogo revolucionário.
Nossa intenção, nas linhas que se seguem, não é estabelecer um caminho rígido e determinista, ao modo kantiano, para as futuras ações políticas dos ditos representantes de um pensamento de direita, mas voltarmo-nos a um dos pais da cultura ocidental (cuja atualidade é irrefutável) e ouvir o que ele tem a nos aconselhar nesta nova fase da história brasileira. Nossa intenção é somente apontar certos princípios do pensamento do velho Aristóteles (elementares ao estudo da filosofia) que devem ser levados em consideração sempre que tratamos de qualquer assunto político que pretenda ser apresentado como um discurso científico, evitando assim uma abordagem excessivamente abstrata da filosofia política. Não faremos uma abordagem exaustiva de todos os elementos do pensamento aristotélico, mas apenas aqueles que sigam o seguinte critério: 1) os princípios universais e necessários da filosofia aristotélica e que, ao mesmo tempo, 2) estejam dentro dos limites da capacidade de explanação do autor do presente artigo. Portanto, evitaremos falar sobre os princípios metafísicos mais complexos da filosofia aristotélica como o hilemorfismo, a distinção entre forma e matéria, a definição de essência, a abstração, intuição sensível etc. Assim, estas breves (e pobres, bem sabemos) linhas são muito mais um convite a Aristóteles que qualquer outra coisa.
ENFIM, ARISTÓTELES
‘’Não há nada que esteja nosso intelecto que não tenha passado antes por nossos sentidos’’. Eis um dos pontos fundamentais da filosofia aristotélica. Aristóteles nos ensinou que o filosofar não parte de idéias abstratas ou problemas prontos, mas sim, da realidade concreta. E ‘’concreto’’, conforme ensinou-nos Mário Ferreira dos Santos, não significa aqui realidades meramente empíricas, físicas, mas a realidade como um todo, em todos os seus elementos; dos átomos aos princípios metafísicos mais necessários e universais. Esta é a essência da filosofia aristotélica: o esforço de demonstrar a unidade da esfera metafísica com a esfera física da realidade, de modo que aquilo que acontece no mundo ‘’sublunar’’ está ligado às leis metafísicas e que as leis metafísicas (necessárias e universais), realizam-se no indivíduo - não como cópia de um eidos em sentido platônico, mas por analogia, por estar inserido na mesma realidade dos princípios metafísicos.
Conscientes do pressuposto de que a realidade (objetiva, independente de nós) é a medida do pensamento, torna-se claro que toda filosofia ou ciência política deve partir, como dizia José Pedro Galvão de Sousa, de ‘’homens concretos tomados em sua realidade histórica’’. A política não parte de ideologias com fórmulas pré-estabelecidas que pretenda justificar o passado e o presente com base em um futuro ideal de mundo perfeito e nem dos princípios – se é que existem - da esquerda ou da direita, do progresso ou da conservação. Nada disso. A política é a consciência dos problemas reais das pessoas reais em suas vidas reais. E nada mais óbvio, caso ela ainda seja a ciência da Pólis, a ciência cujo objeto é o bem comum, tento como medida, o Sumo Bem. Soluções abstratas não são capazes de resolver as tensões da realidade, somente ações concretas, fundamentadas em princípios metafísicos sólidos, têm esta capacidade. As teorias políticas (como liberalismo, conservadorismo etc) servem como um ponto de apoio, um referencial à medida que puderem resolver algum problema da realidade, previamente conhecido mediante o método lógico-dialético, desenvolvido pelo Filósofo. E é o bom uso destes pontos de apoio que gostaríamos de fundamentar através dos princípios aristotélicos que trataremos logo a seguir.
Podemos dizer que a filosofia aristotélica é a filosofia da coragem: se a realidade contradiz o pensamento de Aristóteles, pior para Aristóteles. Ao contrário, para as ideologias modernas, imersas em uma mentalidade kantianamente abstrata, se a realidade contradiz o pensamento, pior para a realidade; uma ideologia nunca erra. E como fazer uma política livre dos ranços unilaterais e abstratos dos ideólogos? Para respondermos a esta pergunta, basta olharmos para os princípios metafísicos, lógicos e cosmológicos descobertos por Aristóteles, que fundamentam a realidade - que exporemos abaixo.
- Ser
- Categorias: Substância e Acidente
- Ato e Potência
- Teoria das quatro causas