As origens do conceito de ideologia
06/11/2018
Augusto Del Noce
Tradução: Gederson Falcometa
Quando comecei a analisar as origens e o significado do termo ideologia no fim do século XVIII, primeiro acreditei que havia bem pouco a dizer para ter uma refência àquilo que esse tem no presente.
A sententia communis é esta mesmo: o termo ideologia foi introduzido pelo menor filósofo Destutt de Tracy, mas nele a respeito do problema psico-gnoseológico da origem das idéias; um problema que parece aparentemente muito distante dos sociais e políticos. Este termo chegou então a Marx, e então tomou o sentido que dura até os nossos dias. Porém, com diferenças: porque, para Marx, ideologia tem o significado de filosofia abstrata, de filosofia das puras idéias, de filosofia especulativa que se insere na realidade histórica como justificação de uma dada ordem histórica; distinta por isso da verdade filosofia que é, sim, filosofia pratica, mas realiza a universalidade humana. Enquanto para o sociologismo contemporâneo ideologia tem o significado de expressão histórico-social de um grupo, como superestrutura espiritual de forças que não tem nada de espiritual, como interesses de classe, motivações coletivas inconscientes, condições concretas da existência social. Pelo qual o progresso das ciências humanas levaria a ciência social, que finalmente, como plena extensão da razão científica ao mundo humano, cumpriria a substituição completa do discurso científico ao discurso filosófico, clareando a origem mundana, social e histórica do pensamento metafísico. O que na declaração, ao menos, de alguns representantes desta atitude mental não comportaria a afirmação da impossibilidade de seres super humanos: apenas a palavra de Deus deveria ser desmitizada, o que significaria o fim completo de toda forma de teologia escolástica.
Qualquer um vê a conexão entre sociologismo, pensamento religioso desmitizado, e psicanálise entendida no sentido de ciência de liberação das máscaras. Bem entendido, com isto não entendi dizer nada contra a sociologia: ao contrário, o meu juízo é exatamente aquele da mestre incomparável da minha geração, Simone Weil: ”as tentativas contemporâneas para fundar a ciência social concluiriam... ao preço de um pouco mais de precisão. Seria preciso colocar a base da noção platônica do grande animal e descrever-lhe minuciosamente, a anatomia, a fisiologia, os reflexos, naturais e condicionados...”. De resto a impressão que se prova na leitura dos sociólogos grandíssimos, por exemplo Pareto, é propriamente aquela de quem, mesmo involuntariamente: seja platônico, no sentido que tenha descrito o grande anima. O importante é que o individuo humano não venha depois ele mesmo entendido como uma abstração que tem realidade apenas no grande animal: tal ao invés é a posição do sociologismo que esta para a sociologia como o cientificismo esta para a ciência.
Curiosamente, nos últimos dez anos o adversário do pensamento religioso mudou. Em certo sentido é sempre o pensamento revolucionário, como fundado sobre a idéia de um “segundo nascimento” que se substituí ao “segundo nascimento” evangélico, e como pode substituir-se, se não substituindo a plenitude do teísmo com aquela do ateísmo?
Mas com o marxismo se era na idéia de uma religião secular, da transcrição laica de um módulo messiânico (uma frase corrente fala de Marx, como do último “profeta hebreu”). Com o sociologismo, ao invés, a revolução é mais profunda, propriamente porque se trata de uma revolução “silenciosa”.
Um belíssimo trecho de Henri Gouthier, escrito quando estes tempos novos ainda não se previam, exprime na maneira mais perfeita a singularidade e maior radicalidade atéia do sociologismo:
“Fundando a filosofia positiva, o pai da sociologia merece a missão que os revolucionários tinham monopolizado. O culto da Razão supunha Deus e alma exclusos, do universo; não era que uma antecipação, até que a nossa ignorância da ordem humana teria permitido a alma e a Deus de se refugiarem. Criar a sociologia, é precisamente descobrir o homem sem traços de Deus; constatar que a filosofia é positiva é ter o direito de não fazer mais contas com as idéias teológicas ou metafísicas. Uma primeira diferença capital opõem a obra de Comte as tentativas já inspiradas pela mesma ambição: antes de inaugurar o culto e de ordenar os padres, ocorre saber aquilo que se deve ensinar: a teoria vem antes da prática, a filosofia antes da moral; a verdade antes da instituição. Disto o inevitável tamanho da empresa e também a sua serenidade: o sucesso é garantido, toda tentativa de ressurreição é impossível e todo esforço contrário perfeitamente vão. Os revolucionários eram obstinados demolidores; Comte não pensa nem mesmo em estabelecer que Deus não existe. Não se demonstra a existência ou a não existência de um ser: se constata a sua presença ou ausência: como Minerva e Apolo, Deus partiu sem deixar questões” (Henri gouhier, La jeunesse d'Auguste Comte et la formation du positivisme, 1, Sous le signe de la liberté, Paris, Vrin, 1933, p. 23; sottolineatura mia).
Com o acréscimo, em nota, desta preciosa citação do Discours dur l’esprit positif:
“Ninguém, sem dúvida, jamais demonstrou logicamente a não existência de Apolo, de Minerva, etc, nem das fadas orientais ou das diversas criações poéticas; mas isto em nenhum modo impediu ao espírito humano de abandonar irrevogavelmente os dogmas antigos, quando esses cessaram de convir ao conjunto da sua situação”.
Talvez aquilo que poderia ser menos previsto, já são vinte anos, é a curiosa nova atualidade de Comte; que se enquadra em um pensamento, pouco tocado, mas certamente jamais adequadamente, e muito menos, exaurido pela repetição do nosso século das figuras do pensamento do século XIX. Todavia, é também verdadeiro que sobre esta atualidade de Comte é preciso trazer algumas considerações. A primeira diz respeito a uma curiosa observação feita pela irmã do filósofo. Alice Comte: “O culto da Humanidade compromete o futuro do positivismo político. As massas são crentes: atacar a sua fé é perder tudo, enquanto o teu sistema apoiado sobre o catolicismo teria um maior número de partidários. Pressentimento de um catolicismo positivista ou de um positivismo católico! A humilde dama não previa nem Brunetière nem Charles Maurras. Porém dava, já em 1849, uma fórmula que o futuro teria reencontrado” (Op. cit., pp. 49-50).
Dizemos: o positivismo comtiano não podia, na sua forma, chegar a consciência popular; para que chegasse era preciso a mediação de alguma outra coisa, de um pensamento nas aparências extremamente distante do comtismo, e isto era exatamente, naquela sua extraordinária capacidade de atingir as massas, o marxismo. Mais ainda: o pensamento de Comte devia despojar-se dos aspectos pelos quais se apresentava, como da atualidade presente da forma mental dos ideólogos. A busca a qual acenavam foi apenas iniciada e me limitarei a dar-lhe, por assim dizer, o esqueleto. Direi, portanto, brevemente de seitas históricas da qual essa deveria tratar.
1. O erro fundamental, cumprido a propósito da situação histórica dos ideólogos, foi aquele de considerá-los em primeiro lugar como discípulos de Condillac. Ao invés disso, eles devem ser vistos antes de tudo como discípulos de Condorcet, mesmo se utilizaram, para completar as visões de Condorcet, a teoria do conhecimento condilaquiana. Esta falsa perspectiva fez com que eles fossem totalmente absorvidos no estudo da formação filosófica ou de Maine de Biran ou de Comte.
As relações dos ideólogos com Maine de Biran e com Comte foram magistralmente estudadas nas insígnes obras de Henri GOUHIER, La jeunesse d'Auguste Comte et la formation du positivisme, t. I, Sous le signe de la libertè, Paris, Vrin, 1933; t. II, Saint-Simon jusqu'à la Restauration, id., 1936; t. III, Auguste Comte et Saint-Simon, id., 1941; particularmente importante, para o tema que aqui interessa, o primeiro volume, onde se coloca em evidência a precedência da influência dos ideólogos sobre aquele de Saint-Simon e a influência condicionante que teve sobre a formação do pensamento comtiano; Les conversions de Maine de Biran, id. ,1947. A importância destes livros é tal que se pode dizer serem o ponto de partida absolutamente indispensáveis para o estudo dos ideólogos. Respeito a gênese do positivismo, a sua importância única depende do fato que se encontram clareadas as origens religiosas do positivismo, em razão do caráter religioso da idéia de Revolução. Resta, porém que, agora, a a atualidade do sociologismo leva a endereçar em outro sentido a pesquisa sobre os ideólogos, embora sob a sua indispensável guia.
Um ponto estupendamente ilustrado por Gouhier e que deve ser sempre tido presente, para a história da mentalidade sociológica, como substuição da filosofia pela sociologia, è aquele pelo qual Comte representa, em certo sentido, a reafirmação de Destutt de Tracy depois Biran; porque para se liberar verdadeiramente do ponto de vista da interioridade, era necessário ultrapassar a ideologia surgida com Condilac, e o seu ponto de vista individualista (cfr. Les conversions de Maine de Biran, cit., p. 12 e passim). Assim, era necessário alcançar o ponto de vista pelo qual o individuo não é que uma abstração destacada da existência coletiva. Porém, fica que o socilogismo contemporâneo, se segue nisto o antibiranismo comtiano e recusa o condillaquismo, todavia, através da recusa do espírito de Restauração e da Filosofia da História, se aproxima mais da também imprecisa visão de Tracy.
Apesar de sua fraqueza filosófica, qualquer utilidade pode ainda ter o velho livro de F. PICAVET, Les idéologues, Alcan, Paris, 1891; nascido de uma repreensão, na III República, ao ideal educativo dos ideólogos, contra aquilo que permanecia do ideal educativo da Restauração; é muito rico de materiais, que ainda aguardam serem avaliados filosoficamente. [Agora se acrescenta um assaz notável livro italiano: moravia S., Il tramonto dell'illuminismo, Laterza, Bari, 1968].
Se lhe julgamos na conexão com Condorcet, adquire carácter simbólico o fato que estes tenham começado as suas atividades especificamente filosófica, com uma edição de Pascal precedida por um elogio que na realidade é o ponto de chegada do anti-Pascal iluminista, de modo que Voltaire poderia escrever que se tratava do anti-Pascal, de um homem de longe superior a Pascal, e D’Alembert estar persuadido que o Pascal-Condorcet valia muito mais que o Pascal jansenista.
- 2.Existe uma comparação perfeita para um verso entre o fracasso da revolução francesa na sua forma jacobina, isto é na linha de Robespierre a Babeuf, e o surgir do ideologismo e por outro entre o fracasso da revolução marxista e a progressiva difusão do sociologismo nos últimos quinze anos, particularmente pela desestalinização em diante, até a que, hoje, o pensar em termos sociológicos se tornou a forma corrente e quase natural do pensamento.