Sedevacantismo, um convite à perdição
08/01/2022
Carlos Nougué
O que diz o título deste escrito não supõe um argumento ad hominem; não visa a desqualificar uma doutrina adversária sem prova, nem requer do leitor um ato de fé. Absolutamente não é isto. É que, para fazer boa teologia – coisa de que estão muito distantes os sedevacantistas –, há que obedecer a um critério fundamental: a analogia da fé. E não se diga que tal analogia, brandida por Leão XIII na Providentissimus Deus, se aplica tão somente à interpretação das Sagradas Escrituras. Não: aplica-se igualmente ao magistério autêntico da Igreja e, quanto ao que nos interessa, a toda a teologia com respeito ao mesmo magistério. Que porém quer dizer aplicar a analogia da fé? Simplesmente isto, se se trata da teologia com respeito ao magistério da Igreja: não se há de defender nada que contrarie o já definido (e definição supõe infalibilidade) pelo mesmo magistério. Um exemplo: se alguém quer sustentar que o mundo durará mil anos após a morte do Anticristo – o que considero ao menos improbabilíssimo –, que o faça, mas sem ferir de modo algum o já definido pelo magistério: quem até o fim dos tempos reinará imediatamente na terra será sempre o vigário de Cristo, nunca diretamente Cristo mesmo, nem o Espírito Santo, nem Maria. Tampouco haverá de negar que o Demônio continuará durante tais mil anos – se os houver – a ser de algum modo o príncipe deste mundo, nem que os homens, incluindo os batizados, continuarão a padecer as sequelas do pecado original: fazê-lo é, uma vez mais, ir contra o definido pelo magistério da Igreja ao longo do tempo. Pois bem, o Concílio Vaticano II e o chamado magistério conciliar (e pós-conciliar) trazem-nos um problema teológico novo, obviamente nunca tratado pelo magistério autêntico da Igreja: no e após o CVII, o magistério da Igreja depôs sua autoridade doutrinal em favor de uma soi-disant autoridade do conjunto do Povo de Deus enquanto tal, o qual seria dotado de um suposto sensus fidei infalível por si. Diante de tal e tão terrível novidade, portanto, é legítimo que se dispute em torno de sua solução. Mas, pela analogia da fé, toda solução quanto a esta questão que contrarie algo definido pelo magistério da Igreja será não só errada mas ilegítima. É o caso do sedevacantismo. Com efeito, definiu o Concílio Vaticano I (D 1825): “Cânon. Se alguém, pois, disser que não é de instituição de Cristo mesmo, isto é, de direito divino, que o bem-aventurado Pedro tenha perpétuossucessores no primado sobre a Igreja universal [...], seja anátema”. Os sedevacantistas tentam enganar-se a si mesmos e aos outros pondo que “perpétuos” não quer dizer “(papas) ininterruptos”, senão que neste cânon só se quis dizer que “o papado será perpétuo”. Sofisma e novilíngua de quinta categoria, claro. Definiu mais, todavia, o Concílio Vaticano I: “A perenidade da Hierarquia definiu-a implicitamente o Concílio Vaticano [I]. Com efeito, definiu explicitamente a perenidade do Primado (D 1824s). É assim que também definiu que é próprio do Primado ter subordinados a si e governar os Pastores ou Bispos da Igreja universal (D 1827-1831); logo, sempre haverá Pastores ou Bispos subordinados ao Primado. Isto mesmo é ensinado explicitamente na introdução à Constituição da Igreja (D 1821)” (P. J. Salaverri S. J., Sacrae Theologiae Summa [dos Padres da Companhia de Jesus, 4.ª ed., Madrid, B.A.C., 1962], trat. III, “De la Iglesia de Jesucristo”, n. 294.). [Quanto, ademais, à perenidade da Igreja, define-a o Vaticano I explicitamente mas indiretamente (D 1821-1824; cf. P. J. Salaverri S. J., ibidem).] Se é assim, por conseguinte, incorrem em anátema os sedevacantistas; e pô-lo supõe aplicar ao caso vertente a analogia da fé. Se pois tivermos qualquer dúvida quanto à solução que se dê à questão gravíssima suscitada pelo magistério vaticano-segundo, não podemos porém de modo algum resolvê-la rompendo a analogia da fé. E é segundo esta analogia que respondo a seguir às dúvidas que me enviou um aluno. 1) “Diz Calderón que o CVII influi até mesmo no código de Direito Canônico. Mas se é assim, e tendo em vista as mudanças que foram feitas sob Paulo VI (Romano Pontifice Elegendo) e JPII (Universi Domini Gregis), mudanças que, se Calderón estiver certo, foram feitas sem autoridade magisterial, se pois é assim, creio que é possível concluir que sua promulgação e execução sejam ilícitas. Mas, se tal o são, deveríamos concluir, como os sedevacantistas, que já não há eleição de cardeais, e, então, de papas e enfim de presbíteros?” RESPOSTA. Veja-se que a própria pergunta já é inadequada, porque supõe possível uma negação de algo definido pelo magistério. A resposta à questão, portanto, há de ser outra.- a) Que o magistério conciliar e pois o CVII sejam ilegítimos, não o podemos decretar nós. Só um Papa ou um concílio sob um Papa. Os sedevacantistas, ao decretá-lo, caem sob outro anátema implicado por outra definição: a de que ninguém pode depor um papa (nem de fato, nem de direito). Mas não disse o Papa Adriano II numa carta incluída na Ação VII do VIII Concílio Ecumênico “que o Romano Pontífice sempre julgou as cabeças de todas as igrejas; mas não vemos em parte alguma que quem quer que seja o tenha julgado a ele. No entanto, é verdade que [o Papa] Honório [I], após sua morte, foi vergastado com o anátema pelos orientais. É necessário todavia não esquecer que ele foi acusado de heresia e que este é o único crime que torna legítima a resistência dos inferiores aos superiores, bem como a rejeição de suas perniciosas doutrinas”? Disse-o, mas disse também que Honório I foi anatematizado pelos orientais num concílio (o VI Ecumênico), com a aprovação de um Papa (São Leão II), e após a morte do Papa vergastado. Mas os sedevacantistas, sem ser padres conciliares e sem a aprovação de nenhum Papa, decretam que nada menos seis Papas não o são!... Ou seja: acrescentam ao anátema uma presunção sem tamanho.
- b) Depois, na Candeia Calderón diz exatamente (contra os sedevacantistas da tese de Cassiciacum) o contrário do posto pela pergunta: as mudanças nas regras da eleição papal feitas pelo magistério conciliar são perfeitamente legítimas. Por quê? Porque tais regras, digo-o eu, não fazem parte do poder autoritativo (de autoridade doutrinal) do magistério (nem de seu objeto primário nem de seu objeto secundário, os quais são os que, ainda que de diferente modo, podem dizer-se infalíveis, ou certos, ou prováveis). Fazem parte do poder governativo(ou seja, aquele meramente de ordem prática e prudencial) do magistério (como também fazem parte deste poder atos como, por exemplo, indicar bispos para esta ou aquela diocese, ou fechar igrejas durante uma pandemia). Por si, isto é a única coisa que não implicaria que o Magistério conciliar (com maiúscula porque agora se trata do sujeito do magistério) tivesse jurisdição precária, ou seja, merecesse não sê-lo por seus desvios da fé (cf. meu Do Papa Herético, p. 286-288, salvo engano). Reproduzo-o: “Como Caetano, João de Santo Tomás, os Carmelitas de Salamanca, Billuart, Afonso Maria de Ligório e tantos outros, pôde dizer Báñez que, ‘como a noção de membro [da igreja] é empregada metaforicamente, dissemos mais acima que pode haver vários ângulos da metáfora: segundo um ângulo [ou seja, a influência espiritual recebida de Cristo, segundo a própria terminologia de Báñez] o pontífice [a fide devius, desviado da fé] não é membro de Cristo ou da Igreja, e segundo outro [o poder de governar] é membro seu’.[180] Para entendê-lo, recorra-se a uma analogia. Como dizia Pio XII, um assassino já perdeu por seu mesmo ato o direito à vida e à cidadania. Mas, digo, é preciso que o estado o julgue, lhe retire a cidadania e o condene à morte. Enquanto ou se não o faz, tal assassino continua com a vida e a cidadania, ainda que só de certo modo, ou seja, em estado precário. Pois é, analogamente, o que nos parece se passa com o papa a fide devius: já deixou ipso facto de ser membro de Cristo e da Igreja; mas ainda preserva a jurisdição, ainda que tão só por falta do devido juízo: mantém-se papa, portanto, com jurisdição precária.[181] – Pode-se recorrer ainda a uma analogia com a potestade civil, como o faz, aliás, o mesmo Domingo Báñez.[182] Com efeito, um governo civil pode dizer-se tirânico se não se funda na verdade, razão por que só secundum quid mantém a autoridade e a jurisdição: ou seja, só enquanto não é deposto. Enquanto todavia não é deposto, segue sendo, de modo precário, o governo da nação. Pois bem, dá-se o mesmo, mutatis mutandis, com a cabeça visível da Igreja que tenha incorrido em heresia: está ipso facto excomungada, mas mantém precariamente a jurisdição.183 E não é essencialmente outra coisa o que se dá com todos os demais clérigos que se tenham desviado da fé: enquanto não são admoestados duas vezes e julgados, mantêm precariamente a jurisdição”. Mas, para que mantenha a jurisdição ainda que precariamente, é preciso que formalmente possam ser válidos os atos de seu poder governativo. Ergo.